domingo, 3 de março de 2019


Um ensaio sobre a Ciganidade

*Igor Shimura



O termo “ciganidade” tem sido utilizado por diferentes pesquisadores do campo cigano. Literaturas diversas, antropológicas ou não, apresentam o termo com diferentes significações, sendo que geralmente é tratado como sinônimo para “identidade” ou “cultura cigana”. O sociólogo Rezende (2000) se refere à ciganidade como algo subjetivo, essencialista, afirmando que se trata da “essência do ser cigano” e “o sentimento inefável do ser cigano”. O historiador Lourival Andrade Júnior (2013) define ciganidade como mecanismo relacional, ou seja, como “forma de se relacionar com o mundo e consigo mesmo que os ciganos desenvolveram em uma história milenar, permeada de perseguições e sofrimentos, sem nunca perder de vista que tudo isso serviria para reforçar sua identidade cultural”. 
Em seu trabalho de psicologia clínica Valéria Sanchez Silva (2006, p. 123), ao se referir a um acampamento em situação de vulnerabilidade social cujos “vestígios culturais pareciam se restringir às roupas velhas e coloridas, usadas no dia-a-dia, ao estilo cigano tradicional, mas, em farrapos”, entendeu que o grupo literalmente “se agarrava aos poucos fios que restam à sua ciganidade” e conclui que “perder a ciganidade é perder a identidade”. A jornalista Isabel Fonseca (1996, p. 65) fala da romipen – traduzido para o português como “ciganidade” – como um conjunto de mecanismos de perpetuação identitária, “rígidos tabus e fórmulas”, reconhecido como “a chave da rara capacidade que têm todos os ciganos de suportar perseguições e mudanças drásticas de muitos tipos, permanecendo sempre ciganos”. 
Abordando de outra maneira, a análise morfológica do termo, composto por “cigano” (substantivo masculino) e pelo sufixo nominal “dade” (qualidade, modo de ser, estado) sugere ciganidade como a qualidade, modo de ser ou “estado” cigano, o que nos permite explorar o seu sentido antropológico, isto é, identidade e cultura cigana. 
Outra significação possível é a da ciganidade como “discurso político”. Semelhantemente à “brasilidade”, ou “identidade brasileira”, decorrente de um processo de construção social a partir da década de 1930 quando Getúlio Vargas chegou ao poder, a ciganidade pode ser interpretada como um discurso cultural e político. A necessidade de representações no cenário político europeu e mais recentemente no Brasil oportunizam o surgimento de ativistas ciganos e não ciganos que atuam no tratamento direto com o Poder Público. 
Cientes dos “preconceitos, manifestações de intolerância e estereótipos negativos muito antigos e dispersos em diferentes sociedades” (VEIGA; MELLO, 2012, p. 86) os ativistas têm elaborado um discurso político em busca de visibilidade e para tanto tem difundido informações, reais e/ou fictícias, acerca de quem são, como vivem e quais são suas demandas. No Brasil esse espaço tem sido explorado desde a década de 80, quando o Centro de Estudos Ciganos (CEC) e em seguida a União Cigana no Brasil (UCB) iniciaram o que se poderia chamar de “movimento cigano” no país, cujo discurso tem na “identidade cigana”, bem como em suas demandas, a base de seus argumentos e ações. 
Uma abordagem também encontrada na literatura, ainda que equivocada, é a ideia da ciganidade racial, isto é, “ser cigano é pertencer à uma raça”. Esse tem sido um dos pontos centrais da discussão acerca da definição de “cigano” na atualidade e sugere a ciganidade biologizada, baseada em laços consanguíneos. O doutor em geografia Marcos Toyansk Guimarais (2012, p. 63) nos mostra que a perspectiva racial tem sido utilizada como categoria nativa para marcar a diferenciação entre “ciganos” e não ciganos, supostamente permitindo a ostentação de uma “identidade global que une os ciganos para além das fronteiras nacionais”, mas que no entanto foi a concepção racial/biológica de ciganidade que gerou consequências desastrosas para milhares de ciganos ao longo da história, como foi o genocídio perpetrado pelos nazistas e seus aliados. 
O discurso racial embutido à ciganidade não se sustenta como categoria analítica devido a impossibilidade de se “definir geneticamente raças humanas que correspondam às fronteiras edificadas pela noção vulgar, nativa, de raça. Dito ainda de outra maneira: a construção baseada em traços fisionômicos, de fenótipo ou de genótipo, é algo que não tem o menor respaldo científico” (GUIMARÃES, 2003). Trata-se de um equívoco conceitual, ainda que sua concepção nativa possa significar simplesmente um termo sustentador de fronteiras interétnicas, cuja função seja seletiva para definir quem é e quem não é cigano. 
Ainda sobre isso, Lusa António Amorim, coordenador do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular (IPATIMUP) em Portugal, afirma que “não há nenhum gene de ‘ciganidade’. As comunidades ciganas, como a portuguesa, não são compostas por indivíduos que tenham uma ‘marca’ genética ou biológica distintiva”. Por isso, ciganidade não pode ser cientificamente vinculada ao termo “raça”, ainda que determinados grupos ciganos discutam parentesco consanguíneo.  
Conhecer a etimologia do termo “cigano” é também importante para que compreendermos o todo complexo da identidade coletiva que se comporta dentro do “guarda-chuva” conceitual da ciganidade. Muitas vezes confundidos como “sarracenos, egípcios, tártaros, boêmios ou gregos” (MARTINEZ, 1989; MOONEN, 2000) os ciganos despertaram o imaginário popular dos europeus ocidentais nos inícios do século XV, quando adentraram à Europa autoproclamando-se “reis” e “duques” (ibidem, 1989, p. 12), “condes” e “voivodes” (Ibidem, 2000, p. 10). 
Utilizando-se de tais representações e ao afirmarem serem originários do “Pequeno Egito”, nome dado a um bairro de Modon – atual região do Peloponeso – na Grécia, os europeus os confundiram com “egípcios” e assim começaram a chamá-los de egitanos, ou gitanos (espanhol), gitan (francês) e gypsy (inglês). Em alguns lugares, no entanto foram associados ao termo atsingani, baseando-se em documentos de um frade franciscano, Syméon Simeonis, de passagem pela Ilha de Creta em 1322, que descrevia um grupo de “músicos e adivinhos nômades” pelo que foram chamados de zingaro (italiano), cigano (português) e tsigane (francês).
Portanto o etnônimo “cigano” é uma exodenominação, ou seja, um termo denominativo criado e imposto pelos “de fora”, pelas sociedades não ciganas – todavia o termo já foi incorporado pelos mais diferentes grupos que a si mesmos de autodenominam “ciganos” (SOUZA, 2013, p. 21). Como “os ciganos” estão presentes em várias partes do mundo, divididos e subdivididos em diversos grupos étnicos, este termo é extremamente generalizante e engloba um sem número de identidades. 
No Ocidente reconhecem-se ao menos três grandes grupos étnicos: Sinti, Rom e Calon, cada qual com inúmeras subdivisões e peculiaridades (linguísticas, culturais, religiosas etc) o que significa que cada grupo possui diferentes autodenominações a partir de sua alteridade: calon autodeclara-se calon, rom autodeclara-se rom e sinti autodeclara-se sinti.
Tratar da ciganidade então se torna um complexo projeto que deve considerar pelo menos três perspectivas que se entrecruzam: a “perspectiva do senso comum”, isto é, o que se “diz acerca” dos ciganos – estigmas ou identidades atribuídas – e que por vezes é incorporada pelos ciganos; a perspectiva de uma “identidade cigana global”, que supostamente compõe elementos que perpassam “todos os ciganos” em todo o mundo; e por fim “a perspectiva local”, particular, singular de cada pequeno ou grande grupo, isto é, a alteridade de cada grupo étnico ou família extensa. 
Quanto à perspectiva do “senso comum”, suas bases estão na construção das imagens construídas sobre os ciganos ao longo da história, nos mais diversos lugares, especialmente na Europa. Essas imagens nos remetem à ideia de um estigma negativo, que conforme Goffman (1988) “é um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo” que pode ser relacionado às especificidades “tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagens e contaminar por igual todos os membros de uma família” (GOFFMAN, 1988, p. 7). Aos ciganos foram atribuídos atributos e características desqualificadas que provocaram um distanciamento social com as sociedades em que se encontravam inseridos.
Tal fato impunha-lhes a busca por alternativas de adequação, com o objetivo de minimizar e rejeição social e obter recursos de sobrevivência. No entanto uma vez que o padrão externo exigido, com normas antagônicas às que perpetuavam sua identidade étnica e por isso destrutivas à sua comunidade, é possível que os ciganos se tornaram indiferentes aos estigmas a eles atribuídos. É isso que Goffman afirma – inclusive citando o exemplo dos ciganos – ao dizer que

Parece possível que um indivíduo não consiga viver de acordo com o que foi efetivamente exigido dele e, ainda assim, permanecer relativamente indiferente ao seu fracasso; isolado por sua alienação, protegido por crenças de identidade próprias, ele sente que é um ser humano completamente normal e que nós é que não somos suficientemente humanos. Ele carrega um estigma, mas não parece impressionado ou arrependido por fazê-lo. Essa possibilidade é celebrada em lendas exemplares sobre os menonitas, os ciganos, os canalhas impunes e os judeus muito ortodoxos (GOFFMAN, 1988, p. 9).          

Essa discussão pode ser melhor compreendida com um resumo histórico que mapeie a trajetória cigana desde sua (suposta) origem. Acredita-se que os ciganos sejam originários da Índia – o tema continua promovendo debates no meio acadêmico; há pesquisas que consideram outras origens: Suméria, Egito, Israel, dentre outros. “A origem dos ciganos e o porquê de sua dispersão pelo mundo são assuntos tão discutidos como não resolvidos” (PEREIRA, 2009, p. 19). Para Moonen (2013, p. 2) “não resta dúvida alguma que os ciganos são originários da Índia, de onde saíram em sucessivas ondas migratórias uns mil anos atrás”. 
O que se sabe é que sua diáspora os levou para diferentes contextos socioculturais, onde muito sofrimento lhes foi imposto. Segundo Fonseca (1996, p. 255) ninguém sabe como chamar os ciganos e cada língua tem um termo que denota um significado estritamente social. Em inglês o termo gypping significa “trapaceiro” e demonstra a marginalidade com que os ciganos são tratados, vistos como hereges, canalhas, desonestos, ladrões e briguentos.

Em um primeiro momento, eles foram recebidos com certo entusiasmo e curiosidade, pois eram indivíduos exóticos, provenientes de terras distantes, que aguçavam a imaginação do povo em geral e dos intelectuais. Contudo, não demorou muito para que fossem identificados com a bruxaria, o paganismo e o banditismo. Logo, os rumores e boatos sobre a origem herética e selvagem desses peregrinos se difundiram pelos quatro cantos da Europa, fundamentando os primeiros estereótipos sobre os ciganos (FAZITO, 2006, pp. 698,689). 

            Dessa forma a repulsa por ciganos na Europa já a partir de sua chegada gerou uma onda de perseguições que se tornou mais sistemática a partir de escritos de intelectuais que reforçaram os estereótipos já existentes, sendo um dos principais o alemão Heinrich Grellmann (1753-1804). Ao publicar o livro Die Zigeuner (Os Ciganos) em 1783, Grellmann “estabeleceu os padrões para os subsequentes pesquisadores ao longo de muitos anos” e “ampliou e difundiu vários temas sensacionalistas como a irrestrita depravação das mulheres ciganas e as acusações de canibalismo” (FRASER, 1992, p. 195). 
Num capítulo sobre “Comidas e Bebidas Ciganas” transcreveu a notícia de um jornal datado de 1782 que acusava “ciganos” de serem antropófagos. “Na época, 84 ciganos foram presos como suspeitos de terem assassinado e depois comido algumas pessoas desaparecidas: 41 ciganos foram decapitados, enforcados ou esquartejados” (MOONEN, 2000, p. 66).  Estabelecidos os estereótipos, os ciganos sofreram todo tipo de barbárie, sendo vistos como uma “raça degenerada”. Na Moldávia e Transilvânia foram escravizados, forçados ao trabalho pesado, negociados como mercadoria entre senhores feudais e extirpados de toda forma de propriedade dentre outras formas de perseguição, inclusive assassinados (FRASER, 1995, p. 223). 

Durante mais de quatrocentos anos, até 1856, os ciganos foram escravos na Valáquia e na Moldávia, principados feudais que junto com a Transilvânia constituem hoje a moderna Romênia. Alguns transilvanos também possuíam escravos, mas só nesses principados a escravidão era institucionalizada, primeiro como “costume da terra”, depois entronizada numa moldura legal completa (FONSECA, 1996, p. 199). 

Alguns historiadores romenos entendiam que os ciganos eram “naturalmente depravados” e que escravizá-los “era considerada uma melhoria do seu estado anterior (sobre o qual até hoje nada se pode estabelecer com firmeza), porque pelo menos dessa forma eram integrados de maneira útil à sociedade” (ibidem, p. 200). A ideia da “identidade cigana global” se depara com a complexidade da “multiculturalidade cigana”. Dispersos por todo o mundo

(...) podem ser comparados a uma “colcha de retalhos” no que diz respeito à cultura, pois cada grupo, influenciado pelo contexto local em que vive altera seu modo de vida de acordo com os costumes, crenças e expressões culturais locais. Por isso, as diferentes culturas que formam o mosaico linguístico, social e religioso dos ciganos revelam-se como objeto de interesse antropológico (SHIMURA, 2014, p. 15).

No entanto as diferenças culturais da ciganidade são suprimidas com uma “noção de ‘unidade na diversidade’” (FAZITO, 2006, p. 689) promovida por elementos supostamente comuns aos ciganos em todo o mundo. É a perspectiva da “identidade cigana global”.

(...) sentimento de comunidade permite considerá-los como uma nação, embora falte o que para os especialistas são elementos básicos integrantes desse conceito, quer dizer, instituições jurídicas e sociais unificadas e um determinado território, embora permaneçam ciganos muitos indivíduos e até mesmo grupos que se tornaram sedentários ou que perderam o uso da linguagem hereditária (SARRAMONE, 2007, p. 143, tradução nossa).

Quanto a essa noção de unidade na diversidade constituinte do sentimento de comunidade, a família cigana polonesa Kwiek propôs, em 1934, a criação de um “Estado Cigano”, o “Romanistão”, recebendo apoio de ciganos espanhóis, franceses e húngaros (GUIMARAIS, 2012, p. 107). O Nazismo fez com que o movimento esmorecesse. Mas em 1959 “o cigano romeno radicado na França, Ionel Rotaru, conhecido como Vaida Voevod, estabeleceu a comunidade nacionalista Communauté Mondiale Gitane (Comunidade Cigana Mundial)” e defendeu a criação de um estado cigano. 
Depois de uma longa jornada de negociações, viagens e idealizações – chegando inclusive a emitir passaportes do novo estado nos anos 70 e a solicitar uma região ao governo francês – o projeto colidiu com interesses da França e não foi adiante (Ibidem, p. 108). Segundo Klimová (2005, p. 16 apud GUIMARAIS, 2012, p. 108-109) “o principal objetivo dessas primeiras organizações era estabelecer um Estado Romani (cigano) com a ajuda da Organização das Nações Unidas (ONU) e com o dinheiro a ser recebido pelas reparações coletivas do holocausto ou, alternativamente, adquirir ao menos um status internacional reconhecido para os roma com a confecção de passaportes ciganos”. 
Outros projetos se seguiram, considerando a formação de um Estado Cigano em regiões entre a Índia e Egito, entre Romênia e a Bulgária, na Polônia e na Macedônia etc, porém sem sucesso por diversas razões, principalmente geopolíticas e econômicas. No entanto a ideia foi mantida por muitos anos, pois se tratava da sobrevivência da ciganidade, como bem expressa o líder cigano búlgaro Manush Romanov, na década de 90:

Queremos escolas separadas, nossas línguas próprias ensinadas nessas escolas, e nossas próprias cidades. Temos que construir casas para nosso povo, casas novas em bairros novos, não misturadas com os búlgaros com quem não nos damos. Temos que ter nossos próprios lares para nosso próprio modo de vida. Um dia, teremos nosso próprio país – o Romanistão. Agora não temos nem nossos próprios lugares. Ter um lar, ter uma casa, é, afinal de contas, mais importante até do que ter um país (FONSECA, 1996, p. 334).

Nessa mesma época o movimento cigano, com novas lideranças tais como Nicolae Gheorghe e Ian Hancock, se destacava na arena política internacional, reivindicando políticas inclusivas que reparassem o caos social sofrido pelos ciganos durante séculos. Gheorghe “propôs uma identidade alternativa – para muitos sacrílega – pela qual sua gente podia ser vista e discutida, independentemente de suas características” (ibidem, p. 337). A ideia era que a separação entre cidadania e nacionalidade “podia ser expandida para acomodar também uma população transnacional, composta de cidadãos leais de diferentes países”. 
Hancock “imaginou uma identidade transnacional na forma de ‘reunificação’”, que buscava uma espécie de “restauração identitária cigana”, baseando-se na ideia de que um povo unido que poderia “agir como um país”. O objetivo desse movimento era a construção de um senso comunitário transnacional, um único povo, uma nação interligada por um nome e identidade comum, “Romani”, ideia bem expressa nas palavras de Hancock: “Saímos da Índia como um povo único, com uma única língua e uma única história. Só nos fragmentamos a partir da chegada na Europa [...] Temos que voltar a ser um único povo” (Ibidem, pp. 337-338). Tais iniciativas abordam as tensões e dinâmicas das construções identitárias, líquidas e solúveis à mercê das negociações derivadas das relações interétnicas. Considerando essa perspectiva, neste trabalho tratamos “os ciganos” como uma nação peculiar que ancora sua nacionalidade em sua pertença étnica simbolizada por signos e representações, não obstante não possuir as instituições jurídicas e sociais ou um território definido. 
            A terceira perspectiva de ciganidade é da localidade, particularidade. Se por um lado a ciganidade pode se situar numa perspectiva global, composta de elementos supostamente compartilhados pela “comunidade cigana internacional” (como fatos históricos tidos como “comuns a todos os ciganos”, como o holocausto, e algumas características e perfis possivelmente atribuídos “aos ciganos” como a oralidade, o nomadismo, o patriarcalismo, o fato de serem discriminados etc), por outro lado cada grupo em particular possui expressões singulares para manifestar sua ciganidade: elementos assimilados e apreendidos em contextos específicos (regionalismos, linguagens, dinâmicas de sobrevivência, moradia etc).  
            Nesse sentido podemos pensar que a ciganidade também estabelece fronteiras étnicas internas e promove tanto o jogo dialético entre o “eu/nós” e o “outro-não cigano” como também o “eu/nós” ciganos e o “outro-cigano”. Por isso o trabalho antropológico de interpretação da ciganidade se estabelece como um projeto complexo: não existe uma única cultura cigana, mas várias perspectivas da alteridade cigana.
Deste modo as concepções acerca da própria identidade são diferenciantes entre um cigano e outro, moldadas não apenas pelas circunstâncias internas de cada comunidade local, mas também pelas configurações do contexto sociocultural não cigano que envolve cada grupo em particular. Objetivamente, cada grupo cigano possui sua alteridade como padrão de ciganidade. Poderíamos então pensar sobre uma “romanidade” dos Rom, a “sinticidade” dos Sinti e como diz Ferrari (2010), a “calonidade” dos Calon:

A “calonidade” não configura uma “lista de atributos”, mas um processo de “fazer-se”, um modo de agir “em construção”, continuamente reinventado e incompleto, por definição. Nesse sentido, a calonidade é ela própria performativa, quero dizer, é definida na e pela performance, o que não se confunde com a formulação de uma “identidade calon” atualizada em múltiplas performances.

 Essa ideia é ainda mais ampla: mesmo internamente, em cada unidade diferenciante que compõem a subjetiva calonidade, existem perspectivas particulares de calonidade. Isso significa que a “calonidade” dos Calon de São Paulo pode não ser idêntica à “calonidade” dos Calon do Rio Grande do Sul ou à dos itinerantes do interior de Minas Gerais. A “calonidade” dos sedentários de Trindade-GO pode contrastar com a dos sedentários de Uberaba-MG. O mesmo, obviamente pode ocorre com a “romanidade”, a “sinticidade”, nas suas mais diversas versões. 
Sendo assim, penso não ser possível definir numa única sentença teórica – acadêmica ou popular – a totalidade da ciganidade, pois isso exigiria uma generalidade inconcebível, unificante, que invariavelmente englobaria diferentes perspectivas, endógenas e exógenas, conflitantes e inter-relacionadas simultaneamente, imparciais e diferenciantes sobre quem são ou o que é ser cigano. 
Descrever a ciganidade, caracteristicamente plural e sistematicamente inter-relacional em meio aos mais diversos contextos socioculturais num conjunto limitado de palavras pode resultar de inconsistência teórica e empírica, pois sugere um resumo incompatível com a amplitude que o termo exige. Isso se deve à incompatibilidade entre as inúmeras particularidades históricas, sociais e culturais entre os ciganos: “não há uma história específica dos ciganos, nem no Brasil nem no mundo, tampouco há traços culturais característicos que possam definir um grupo cigano” (GOLDFARB, 2013, p. 59). Concluo que nem a academia, nem o Estado ou mesmo os próprios ciganos são capazes de elaborar uma descrição que englobe as inúmeras perspectivas do fenômeno da ciganidade. 
Talvez seja por isso que o que geralmente se faz é reproduzir o senso comum, amplamente difundido na literatura e na arte, aceito e absorvido como verdade absoluta ou então, produzir descrições sobre quem são, como são e como vivem os ciganos de um contexto específico e universalizar tais informações de modo a produzir e reproduzir estereótipos. Sendo assim é de se esperar que conceitos e definições disseminadas na arte e na literatura contenham generalizações, especialmente estigmatizantes.

Extraído do livro: SHIMURA, Igor. Ser cigano: identidade étnica em um acampamento calon itinerante. Maringá: Amazon, 2017. P. 17-24.

Referências Bibliográficas

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FAZITO, Dimitri. A identidade cigana e o efeito de “nomeação”: deslocamento das representações numa teia de discursos mitológicos-científicos e práticas sociais. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, vol.49, n.2, São Paulo July/Dec. 2006.
FERRARI, Florência. O mundo passa: uma etnografia dos calon e suas relações com os brasileiros. 2010. 380 f. (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, 2010.
FONSECA, Isabel. Enterre-me em pé: os ciganos e a sua jornada. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 
FRASER, Angus. The gypsies. Malden, MA: Blackwell Publishing, 1992.  
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Memória e etnicidade entre os ciganos calon em Sousa-PB. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013 (Coleção Humanidades).
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan/jun. 2003. 
GUIMARAIS, Marcos Toyansk Silva. O associativismo transnacional cigano: identidades, diásporas e territórios. 2012. 231 f. (Tese de Doutorado em Geografia). Universidade de São Paulo, 2012.
MOONEN, Frans. Anticiganismo e políticas ciganas na Europa e no Brasil. Revisão revista e aumentada. 2013. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/fmo_2013_anticiganismoeuropabrasil.pdfAcesso em: 10 jan. 2016.     
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PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 
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SARRAMONE, Alberto. Gitanos: historia, costumbres, mistério y rechazo. 1 ed. Buenos Aires: Editorial Biblos Azul, 2007.
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* É o atual diretor do Departamento de Igualdade Racial e Étnica (DEPIR) da Secretaria Nacional de Promoção de Igualdade Racial e Étnica - Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH) - Governo Federal. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Especialista em Antropologia Cultural pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA). Professor, Pesquisador e Ativista social pela Associação Social de Apoio Integral aos Ciganos (ASAIC).





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