Um ensaio sobre a Ciganidade
*Igor Shimura
O termo “ciganidade” tem
sido utilizado por diferentes pesquisadores do campo cigano. Literaturas
diversas, antropológicas ou não, apresentam o termo com diferentes
significações, sendo que geralmente é tratado como sinônimo para “identidade”
ou “cultura cigana”. O sociólogo Rezende (2000) se refere à ciganidade como
algo subjetivo, essencialista, afirmando que se trata da “essência do ser cigano”
e “o sentimento inefável do ser cigano”. O historiador Lourival Andrade Júnior
(2013) define ciganidade como mecanismo relacional, ou seja, como “forma de se
relacionar com o mundo e consigo mesmo que os ciganos desenvolveram em uma
história milenar, permeada de perseguições e sofrimentos, sem nunca perder de
vista que tudo isso serviria para reforçar sua identidade cultural”.
Em seu trabalho de
psicologia clínica Valéria Sanchez Silva (2006, p. 123), ao se referir a um
acampamento em situação de vulnerabilidade social cujos “vestígios culturais
pareciam se restringir às roupas velhas e coloridas, usadas no dia-a-dia, ao
estilo cigano tradicional, mas, em farrapos”, entendeu que o grupo literalmente
“se agarrava aos poucos fios que restam à sua ciganidade” e conclui que “perder
a ciganidade é perder a identidade”. A jornalista Isabel Fonseca (1996, p. 65)
fala da romipen – traduzido para o
português como “ciganidade” – como um conjunto de mecanismos de perpetuação
identitária, “rígidos tabus e fórmulas”, reconhecido como “a chave da rara
capacidade que têm todos os ciganos de suportar perseguições e mudanças
drásticas de muitos tipos, permanecendo sempre ciganos”.
Abordando de outra
maneira, a análise morfológica do termo, composto por “cigano” (substantivo
masculino) e pelo sufixo nominal “dade” (qualidade, modo de ser, estado) sugere
ciganidade como a qualidade, modo de ser ou “estado” cigano, o que nos permite
explorar o seu sentido antropológico, isto é, identidade e cultura cigana.
Outra significação
possível é a da ciganidade como “discurso político”. Semelhantemente à
“brasilidade”, ou “identidade brasileira”, decorrente de um processo de
construção social a partir da década de 1930 quando Getúlio Vargas chegou ao
poder, a ciganidade pode ser interpretada como um discurso cultural e político.
A necessidade de representações no cenário político europeu e mais recentemente
no Brasil oportunizam o surgimento de ativistas ciganos e não ciganos que atuam
no tratamento direto com o Poder Público.
Cientes dos “preconceitos,
manifestações de intolerância e estereótipos negativos muito antigos e
dispersos em diferentes sociedades” (VEIGA; MELLO, 2012, p. 86) os ativistas
têm elaborado um discurso político em busca de visibilidade e para tanto tem difundido
informações, reais e/ou fictícias, acerca de quem são, como vivem e quais são
suas demandas. No Brasil esse espaço tem sido explorado desde a década de 80,
quando o Centro de Estudos Ciganos (CEC) e em seguida a União Cigana no Brasil
(UCB) iniciaram o que se poderia chamar de “movimento cigano” no país, cujo
discurso tem na “identidade cigana”, bem como em suas demandas, a base de seus
argumentos e ações.
Uma abordagem também encontrada na literatura,
ainda que equivocada, é a ideia da ciganidade racial, isto é, “ser cigano é
pertencer à uma raça”. Esse tem sido um dos pontos centrais da discussão acerca
da definição de “cigano” na atualidade e sugere a ciganidade biologizada,
baseada em laços consanguíneos. O doutor em geografia Marcos Toyansk Guimarais
(2012, p. 63) nos mostra que a perspectiva racial tem sido utilizada como
categoria nativa para marcar a diferenciação entre “ciganos” e não ciganos, supostamente
permitindo a ostentação de uma “identidade global que une os ciganos para além
das fronteiras nacionais”, mas que no entanto foi a concepção racial/biológica
de ciganidade que gerou consequências desastrosas para milhares de ciganos ao
longo da história, como foi o genocídio perpetrado pelos nazistas e seus
aliados.
O discurso racial embutido à ciganidade não se
sustenta como categoria analítica devido a impossibilidade de se “definir
geneticamente raças humanas que correspondam às fronteiras edificadas pela
noção vulgar, nativa, de raça. Dito ainda de outra maneira: a construção
baseada em traços fisionômicos, de fenótipo ou de genótipo, é algo que não tem
o menor respaldo científico” (GUIMARÃES, 2003). Trata-se de um equívoco
conceitual, ainda que sua concepção nativa possa significar simplesmente um
termo sustentador de fronteiras interétnicas, cuja função seja seletiva para
definir quem é e quem não é cigano.
Ainda sobre isso, Lusa António Amorim,
coordenador do Instituto de Patologia e
Imunologia Molecular (IPATIMUP) em Portugal, afirma que “não há nenhum gene de
‘ciganidade’. As comunidades ciganas, como a portuguesa, não são compostas por
indivíduos que tenham uma ‘marca’ genética ou biológica distintiva”. Por isso, ciganidade
não pode ser cientificamente vinculada ao termo “raça”, ainda que determinados
grupos ciganos discutam parentesco consanguíneo.
Conhecer
a etimologia do termo “cigano” é também importante para que compreendermos o
todo complexo da identidade coletiva que se comporta dentro do “guarda-chuva”
conceitual da ciganidade. Muitas vezes confundidos como “sarracenos, egípcios,
tártaros, boêmios ou gregos” (MARTINEZ, 1989; MOONEN, 2000) os ciganos
despertaram o imaginário popular dos europeus ocidentais nos inícios do século
XV, quando adentraram à Europa autoproclamando-se “reis” e “duques” (ibidem,
1989, p. 12), “condes” e “voivodes” (Ibidem, 2000, p. 10).
Utilizando-se de
tais representações e ao afirmarem serem originários do “Pequeno Egito”, nome
dado a um bairro de Modon – atual região do Peloponeso – na Grécia, os europeus
os confundiram com “egípcios” e assim começaram a chamá-los de egitanos, ou gitanos (espanhol), gitan (francês)
e gypsy (inglês). Em alguns lugares,
no entanto foram associados ao termo atsingani,
baseando-se em documentos de um frade franciscano, Syméon Simeonis, de passagem
pela Ilha de Creta em 1322, que descrevia um grupo de “músicos e adivinhos
nômades” pelo que foram chamados de zingaro
(italiano), cigano (português) e tsigane (francês).
Portanto o
etnônimo “cigano” é uma exodenominação, ou seja, um termo denominativo criado e
imposto pelos “de fora”, pelas sociedades não ciganas – todavia o termo já foi incorporado
pelos mais diferentes grupos que a si mesmos de autodenominam “ciganos” (SOUZA,
2013, p. 21). Como “os ciganos” estão presentes em várias partes do mundo,
divididos e subdivididos em diversos grupos étnicos, este termo é extremamente
generalizante e engloba um sem número de identidades.
No Ocidente
reconhecem-se ao menos três grandes grupos étnicos: Sinti, Rom e Calon, cada qual com inúmeras
subdivisões e peculiaridades (linguísticas, culturais, religiosas etc) o que
significa que cada grupo possui diferentes autodenominações a partir de sua
alteridade: calon autodeclara-se calon, rom autodeclara-se rom e sinti
autodeclara-se sinti.
Tratar da
ciganidade então se torna um complexo projeto que deve considerar pelo menos
três perspectivas que se entrecruzam: a “perspectiva do senso comum”, isto é, o
que se “diz acerca” dos ciganos – estigmas ou identidades atribuídas – e que
por vezes é incorporada pelos ciganos; a perspectiva de uma “identidade cigana
global”, que supostamente compõe elementos que perpassam “todos os ciganos” em
todo o mundo; e por fim “a perspectiva local”, particular, singular de cada
pequeno ou grande grupo, isto é, a alteridade de cada grupo étnico ou família
extensa.
Quanto à
perspectiva do “senso comum”, suas bases estão na construção das imagens
construídas sobre os ciganos ao longo da história, nos mais diversos lugares,
especialmente na Europa. Essas imagens nos remetem à ideia de um estigma negativo,
que conforme Goffman (1988) “é um tipo especial de relação entre atributo e
estereótipo” que pode ser relacionado às especificidades “tribais de raça,
nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagens e contaminar
por igual todos os membros de uma família” (GOFFMAN, 1988, p. 7). Aos ciganos
foram atribuídos atributos e características desqualificadas que provocaram um
distanciamento social com as sociedades em que se encontravam inseridos.
Tal fato
impunha-lhes a busca por alternativas de adequação, com o objetivo de minimizar
e rejeição social e obter recursos de sobrevivência. No entanto uma vez que o
padrão externo exigido, com normas antagônicas às que perpetuavam sua
identidade étnica e por isso destrutivas à sua comunidade, é possível que os ciganos
se tornaram indiferentes aos estigmas a eles atribuídos. É isso que Goffman
afirma – inclusive citando o exemplo dos ciganos – ao dizer que
Parece possível
que um indivíduo não consiga viver de acordo com o que foi efetivamente exigido
dele e, ainda assim, permanecer relativamente indiferente ao seu fracasso;
isolado por sua alienação, protegido por crenças de identidade próprias, ele
sente que é um ser humano completamente normal e que nós é que não somos
suficientemente humanos. Ele carrega um estigma, mas não parece impressionado
ou arrependido por fazê-lo. Essa possibilidade é celebrada em lendas exemplares
sobre os menonitas, os ciganos, os
canalhas impunes e os judeus muito ortodoxos (GOFFMAN, 1988, p. 9).
Essa discussão pode
ser melhor compreendida com um resumo histórico que mapeie a trajetória cigana
desde sua (suposta) origem. Acredita-se que os ciganos sejam originários da
Índia – o tema continua promovendo debates no meio acadêmico; há pesquisas que
consideram outras origens: Suméria, Egito, Israel, dentre outros. “A origem dos
ciganos e o porquê de sua dispersão pelo mundo são assuntos tão discutidos como
não resolvidos” (PEREIRA, 2009, p. 19). Para Moonen (2013, p. 2) “não resta
dúvida alguma que os ciganos são originários da Índia, de onde saíram em
sucessivas ondas migratórias uns mil anos atrás”.
O que se sabe é
que sua diáspora os levou para diferentes contextos socioculturais, onde muito
sofrimento lhes foi imposto. Segundo Fonseca (1996, p. 255) ninguém sabe como
chamar os ciganos e cada língua tem um termo que denota um significado
estritamente social. Em inglês o termo gypping
significa “trapaceiro” e demonstra a marginalidade com que os ciganos são
tratados, vistos como hereges, canalhas, desonestos, ladrões e briguentos.
Em um primeiro
momento, eles foram recebidos com certo entusiasmo e curiosidade, pois eram
indivíduos exóticos, provenientes de terras distantes, que aguçavam a
imaginação do povo em geral e dos intelectuais. Contudo, não demorou muito para
que fossem identificados com a bruxaria, o paganismo e o banditismo. Logo, os
rumores e boatos sobre a origem herética e selvagem desses peregrinos se
difundiram pelos quatro cantos da Europa, fundamentando os primeiros
estereótipos sobre os ciganos (FAZITO, 2006, pp. 698,689).
Dessa
forma a repulsa por ciganos na Europa já a partir de sua chegada gerou uma onda
de perseguições que se tornou mais sistemática a partir de escritos de
intelectuais que reforçaram os estereótipos já existentes, sendo um dos
principais o alemão Heinrich Grellmann (1753-1804). Ao publicar o livro Die Zigeuner (Os Ciganos) em 1783, Grellmann “estabeleceu os padrões para os
subsequentes pesquisadores ao longo de muitos anos” e “ampliou e difundiu
vários temas sensacionalistas como a irrestrita depravação das mulheres ciganas
e as acusações de canibalismo” (FRASER, 1992, p. 195).
Num capítulo sobre
“Comidas e Bebidas Ciganas” transcreveu a notícia de um jornal datado de 1782
que acusava “ciganos” de serem antropófagos. “Na época, 84 ciganos foram presos
como suspeitos de terem assassinado e depois comido algumas pessoas
desaparecidas: 41 ciganos foram decapitados, enforcados ou esquartejados”
(MOONEN, 2000, p. 66). Estabelecidos os
estereótipos, os ciganos sofreram todo tipo de barbárie, sendo vistos como uma
“raça degenerada”. Na Moldávia e Transilvânia foram escravizados, forçados ao
trabalho pesado, negociados como mercadoria entre senhores feudais e extirpados
de toda forma de propriedade dentre outras formas de perseguição, inclusive
assassinados (FRASER, 1995, p. 223).
Durante mais de
quatrocentos anos, até 1856, os ciganos foram escravos na Valáquia e na
Moldávia, principados feudais que junto com a Transilvânia constituem hoje a
moderna Romênia. Alguns transilvanos também possuíam escravos, mas só nesses
principados a escravidão era institucionalizada, primeiro como “costume da
terra”, depois entronizada numa moldura legal completa (FONSECA, 1996, p.
199).
Alguns
historiadores romenos entendiam que os ciganos eram “naturalmente depravados” e
que escravizá-los “era considerada uma melhoria do seu estado anterior (sobre o
qual até hoje nada se pode estabelecer com firmeza), porque pelo menos dessa
forma eram integrados de maneira útil à sociedade” (ibidem, p. 200). A ideia da
“identidade cigana global” se depara com a complexidade da “multiculturalidade
cigana”. Dispersos por todo o mundo
(...) podem ser
comparados a uma “colcha de retalhos” no que diz respeito à cultura, pois cada
grupo, influenciado pelo contexto local em que vive altera seu modo de vida de
acordo com os costumes, crenças e expressões culturais locais. Por isso, as
diferentes culturas que formam o mosaico linguístico, social e religioso dos
ciganos revelam-se como objeto de interesse antropológico (SHIMURA, 2014, p.
15).
No entanto as
diferenças culturais da ciganidade são suprimidas com uma “noção de ‘unidade na
diversidade’” (FAZITO, 2006, p. 689) promovida por elementos supostamente
comuns aos ciganos em todo o mundo. É a perspectiva da “identidade cigana
global”.
(...)
sentimento de comunidade permite considerá-los como uma nação, embora falte o
que para os especialistas são elementos básicos integrantes desse conceito,
quer dizer, instituições jurídicas e sociais unificadas e um determinado território,
embora permaneçam ciganos muitos indivíduos e até mesmo grupos que se tornaram
sedentários ou que perderam o uso da linguagem hereditária (SARRAMONE, 2007, p.
143, tradução nossa).
Quanto a essa
noção de unidade na diversidade constituinte do sentimento de comunidade, a
família cigana polonesa Kwiek propôs, em 1934, a criação de um “Estado Cigano”,
o “Romanistão”, recebendo apoio de ciganos espanhóis, franceses e húngaros
(GUIMARAIS, 2012, p. 107). O Nazismo fez com que o movimento esmorecesse. Mas
em 1959 “o cigano romeno radicado na França, Ionel Rotaru, conhecido como Vaida
Voevod, estabeleceu a comunidade nacionalista Communauté Mondiale Gitane (Comunidade Cigana Mundial)” e defendeu
a criação de um estado cigano.
Depois de uma
longa jornada de negociações, viagens e idealizações – chegando inclusive a
emitir passaportes do novo estado nos anos 70 e a solicitar uma região ao
governo francês – o projeto colidiu com interesses da França e não foi adiante
(Ibidem, p. 108). Segundo Klimová (2005, p. 16 apud GUIMARAIS, 2012, p. 108-109) “o principal objetivo dessas
primeiras organizações era estabelecer um Estado Romani (cigano) com a ajuda da
Organização das Nações Unidas (ONU) e com o dinheiro a ser recebido pelas
reparações coletivas do holocausto ou, alternativamente, adquirir ao menos um status internacional reconhecido para os
roma com a confecção de passaportes ciganos”.
Outros projetos se
seguiram, considerando a formação de um Estado Cigano em regiões entre a Índia
e Egito, entre Romênia e a Bulgária, na Polônia e na Macedônia etc, porém sem
sucesso por diversas razões, principalmente geopolíticas e econômicas. No
entanto a ideia foi mantida por muitos anos, pois se tratava da sobrevivência
da ciganidade, como bem expressa o líder cigano búlgaro Manush Romanov, na
década de 90:
Queremos escolas
separadas, nossas línguas próprias ensinadas nessas escolas, e nossas próprias
cidades. Temos que construir casas para nosso povo, casas novas em bairros
novos, não misturadas com os búlgaros com quem não nos damos. Temos que ter
nossos próprios lares para nosso próprio modo de vida. Um dia, teremos nosso
próprio país – o Romanistão. Agora não temos nem nossos próprios lugares. Ter
um lar, ter uma casa, é, afinal de contas, mais importante até do que ter um
país (FONSECA, 1996, p. 334).
Nessa mesma época
o movimento cigano, com novas lideranças tais como Nicolae Gheorghe e Ian
Hancock, se destacava na arena política internacional, reivindicando políticas
inclusivas que reparassem o caos social sofrido pelos ciganos durante séculos.
Gheorghe “propôs uma identidade alternativa – para muitos sacrílega – pela qual
sua gente podia ser vista e discutida, independentemente de suas
características” (ibidem, p. 337). A ideia era que a separação entre cidadania
e nacionalidade “podia ser expandida para acomodar também uma população
transnacional, composta de cidadãos leais de diferentes países”.
Hancock “imaginou
uma identidade transnacional na forma de ‘reunificação’”, que buscava uma
espécie de “restauração identitária cigana”, baseando-se na ideia de que um
povo unido que poderia “agir como um país”. O objetivo desse movimento era a
construção de um senso comunitário transnacional, um único povo, uma nação interligada por um nome e
identidade comum, “Romani”, ideia bem expressa nas palavras de Hancock: “Saímos
da Índia como um povo único, com uma única língua e uma única história. Só nos
fragmentamos a partir da chegada na Europa [...] Temos que voltar a ser um
único povo” (Ibidem, pp. 337-338). Tais iniciativas abordam as tensões e
dinâmicas das construções identitárias, líquidas e solúveis à mercê das
negociações derivadas das relações interétnicas. Considerando essa perspectiva,
neste trabalho tratamos “os ciganos” como uma nação peculiar que ancora sua nacionalidade
em sua pertença étnica simbolizada por signos e representações, não obstante
não possuir as instituições jurídicas e sociais ou um território definido.
A
terceira perspectiva de ciganidade é da localidade, particularidade. Se por um
lado a ciganidade pode se situar numa perspectiva global, composta de elementos
supostamente compartilhados pela “comunidade cigana internacional” (como fatos
históricos tidos como “comuns a todos os ciganos”, como o holocausto, e algumas
características e perfis possivelmente atribuídos “aos ciganos” como a
oralidade, o nomadismo, o patriarcalismo, o fato de serem discriminados etc),
por outro lado cada grupo em particular possui expressões singulares para
manifestar sua ciganidade: elementos assimilados e apreendidos em contextos
específicos (regionalismos, linguagens, dinâmicas de sobrevivência, moradia
etc).
Nesse
sentido podemos pensar que a ciganidade também estabelece fronteiras étnicas
internas e promove tanto o jogo dialético entre o “eu/nós” e o “outro-não
cigano” como também o “eu/nós” ciganos e o “outro-cigano”. Por isso o trabalho antropológico de interpretação da
ciganidade se estabelece como um projeto complexo: não existe uma única cultura
cigana, mas várias perspectivas da alteridade cigana.
Deste modo as concepções acerca da própria identidade
são diferenciantes entre um cigano e outro, moldadas não apenas pelas
circunstâncias internas de cada comunidade local, mas também pelas
configurações do contexto sociocultural não cigano que envolve cada grupo em
particular. Objetivamente, cada grupo cigano possui sua alteridade como padrão
de ciganidade. Poderíamos então pensar sobre uma “romanidade” dos Rom, a
“sinticidade” dos Sinti e como diz Ferrari (2010), a “calonidade” dos Calon:
A
“calonidade” não configura uma “lista de atributos”, mas um processo de
“fazer-se”, um modo de agir “em construção”, continuamente reinventado e
incompleto, por definição. Nesse sentido, a calonidade é ela própria
performativa, quero dizer, é definida na e pela performance, o que não se
confunde com a formulação de uma “identidade calon” atualizada em múltiplas
performances.
Essa ideia é ainda mais ampla:
mesmo internamente, em cada unidade diferenciante que compõem a subjetiva
calonidade, existem perspectivas particulares de calonidade. Isso significa que
a “calonidade” dos Calon de São Paulo pode não ser idêntica à “calonidade” dos
Calon do Rio Grande do Sul ou à dos itinerantes do interior de Minas Gerais. A
“calonidade” dos sedentários de Trindade-GO pode contrastar com a dos
sedentários de Uberaba-MG. O mesmo, obviamente pode ocorre com a “romanidade”,
a “sinticidade”, nas suas mais diversas versões.
Sendo assim, penso não ser possível
definir numa única sentença teórica – acadêmica ou popular – a totalidade da
ciganidade, pois isso exigiria uma generalidade inconcebível, unificante, que
invariavelmente englobaria diferentes perspectivas, endógenas e exógenas,
conflitantes e inter-relacionadas simultaneamente, imparciais e diferenciantes
sobre quem são ou o que é ser cigano.
Descrever a
ciganidade, caracteristicamente plural e sistematicamente inter-relacional em
meio aos mais diversos contextos socioculturais num conjunto limitado de
palavras pode resultar de inconsistência teórica e empírica, pois sugere um
resumo incompatível com a amplitude que o termo exige. Isso se deve à
incompatibilidade entre as inúmeras particularidades históricas, sociais e
culturais entre os ciganos: “não há uma história específica dos ciganos, nem no
Brasil nem no mundo, tampouco há traços culturais característicos que possam
definir um grupo cigano” (GOLDFARB, 2013, p. 59). Concluo que nem a academia,
nem o Estado ou mesmo os próprios ciganos são capazes de elaborar uma descrição
que englobe as inúmeras perspectivas do fenômeno da ciganidade.
Talvez seja por
isso que o que geralmente se faz é reproduzir o senso comum, amplamente
difundido na literatura e na arte, aceito e absorvido como verdade absoluta ou
então, produzir descrições sobre quem são,
como são e como vivem os ciganos de
um contexto específico e universalizar tais informações de modo a produzir e
reproduzir estereótipos. Sendo assim é de se esperar que conceitos e definições
disseminadas na arte e na literatura contenham generalizações, especialmente
estigmatizantes.
Extraído do livro: SHIMURA, Igor. Ser cigano: identidade étnica em um acampamento calon itinerante. Maringá: Amazon, 2017. P. 17-24.
Referências
Bibliográficas
ANDRADE
JÚNIOR, Lourival. Os ciganos e os processos de exclusão. Revista Brasileira de
História, v. 33, n. 66, p. 95-112, out. 2013.
FAZITO,
Dimitri. A
identidade cigana e o efeito de “nomeação”: deslocamento das representações
numa teia de discursos mitológicos-científicos e práticas sociais. Revista de
Antropologia, São Paulo, USP, vol.49, n.2, São
Paulo July/Dec. 2006.
FERRARI,
Florência. O mundo
passa: uma etnografia dos calon e suas relações com os brasileiros. 2010.
380 f. (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, 2010.
FONSECA,
Isabel. Enterre-me
em pé: os ciganos e a sua jornada. Tradução de José Rubens Siqueira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FRASER,
Angus. The
gypsies. Malden, MA: Blackwell Publishing, 1992.
GOLDFARB,
Maria Patrícia Lopes. Memória e etnicidade
entre os ciganos calon em Sousa-PB. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013
(Coleção Humanidades).
GOFFMAN, E.
Estigma: notas
sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1988.
GUIMARÃES,
Antônio Sérgio. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e Pesquisa,
São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan/jun. 2003.
GUIMARAIS,
Marcos Toyansk Silva. O associativismo
transnacional cigano: identidades, diásporas e territórios. 2012. 231 f.
(Tese de Doutorado em Geografia). Universidade de São Paulo, 2012.
MOONEN, Frans. Anticiganismo e políticas ciganas na Europa
e no Brasil. Revisão revista e aumentada. 2013. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/fmo_2013_anticiganismoeuropabrasil.pdfAcesso em: 10
jan. 2016.
MOONEN, Frans. Rom, sinti e calon. Os
assim chamados ciganos. E-texto nº 1. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2000b.
PEREIRA,
Cristina da Costa. Os
ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
REZENDE,
Dimitri Fazito de Almeida. Transnacionalismo e
etnicidade – a construção simbólica do romanesthàn (nação cigana). 2000.
192 f. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Universidade Federal de Minas
Gerais, 2000.
SARRAMONE,
Alberto. Gitanos:
historia, costumbres, mistério y rechazo. 1 ed. Buenos Aires: Editorial Biblos
Azul, 2007.
SHIMURA,
Igor. Duvelismo:
identidade e pluralidade religiosa cigana. Londrina: Descoberta, 2014.
SILVA,
Valeria Sanchez. Devir
cigano - o
encontro cigano-não cigano (rom-gadjé) como elemento facilitador do processo de
individualização. 2006. 247 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
VEIGA,
Felipe Berocan; MELLO, Marco Antonio da Silva. A incriminação pela
diferença: casos recentes de intolerância contra ciganos no Brasil. Comunicações do ISER. As máscaras de guerra da intolerância.
Porto Alegre. N. 66 - ano 31. 2012. P. 86-108.
* É o atual diretor do Departamento de Igualdade Racial e Étnica
(DEPIR) da Secretaria Nacional de Promoção de Igualdade Racial e Étnica -
Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH) - Governo Federal.
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM),
Especialista em Antropologia Cultural pela Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUCPR), Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana
(FTSA). Professor, Pesquisador e Ativista social pela Associação Social de
Apoio Integral aos Ciganos (ASAIC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário