terça-feira, 26 de março de 2019

7 Segmentos Ciganos pouco reconhecidos no Brasil: especificidades versus generalizações


7 Segmentos Ciganos pouco reconhecidos no Brasil: especificidades versus generalizações

Igor Shimura*




Há muitos anos digo que o primeiro – e talvez o maior – problema a ser resolvido em relação à exclusão social dos ciganos no Brasil é a desinformação. Nesse sentido os pesquisadores, sejam antropólogos, geógrafos, historiadores etc, podem contribuir em muito com sua produção de conhecimento. A desinformação é uma usina de preconceitos e discriminação, de onde partem atos de racismo contra ciganos não somente em nosso país, mas no mundo todo. Mesclando minha experiência como professor de Metodologia Científica, com formação em Ciências Sociais e como quem tem um vínculo identitário com a ciganidade digo: é um equívoco gravíssimo aplicar as lógicas dedutivas e indutivas às imagens sociais construídas, difundidas e reproduzidas acerca de ciganos, onde quer que seja.  Aliás, tais imagens coexistem numa dinâmica dialógica entre o geral e o particular, onde se desenham e se atualizam definições e conceitos que não correspondem a determinadas alteridades.
Nenhuma generalização sobre ciganos é verdadeira, o que não significa que nenhuma particularização não o seja. Interpretar o universo cigano sob a ótica da dedução conduz ao erro: “todo cigano é nômade”, “aquele homem é cigano”, “logo aquele cigano é nômade”. Que equívoco! Da mesma forma, interpretar esse universo cigano sob a lógica indutiva também gera estereótipo: “aqueles homens são ciganos”, “aqueles ciganos são nômades”, “logo, ciganos são nômades”.
As generalizações se estabelecem e reforçam as imagens essencializadas, pejorativas ou não, de forma que se criou, em relação aos ciganos, a ideia de que existem um “eles”, sim, como se “eles” fossem cultural, linguística e racialmente homogêneos. É comum ouvirmos que “eles, os ciganos, são”. Ouve-se: “os ciganos são nômades”, “os ciganos são violentos”, “os ciganos são católicos”, “os ciganos são pardos”, “os ciganos são vendedores” etc. Nessas falas ouvimos acerca de atribuições de ofícios supostamente tradicionais, características culturais supostamente “coletivas”, fenótipos supostamente característicos de “verdadeiros ciganos” (“cara de cigano”) etc. Tudo isso revela a necessidade urgente de um novo olhar, mais próximo e de forma a desconstruir estereótipos no rumo do reconhecimento a especificidades ainda desconsideradas, desconhecidas e as vezes não admitidas por alguns ativistas, pesquisadores, representantes do poder público e até mesmo por alteridades ciganas particulares.
Escrevo esse pequeno ensaio como uma boa provocação principalmente aos pesquisadores dos “estudos ciganos”. Buscar compreender especificidades tipológicas do universo cigano nos convida a deixar a superficialidade temática e mergulhar nos meandros das relações intraétnicas a que poucos tem acesso. Minha esperança é de que dessa boa provocação desperte-se o interesse e surjam pesquisas voltadas à investigação dessas e outras especificidades antropológicas da ciganidade.
Este texto também visa contribuir, de forma singela, de alguma forma com as necessárias reflexões acerca das conceituações ainda generalizantes que constam no PLS 248/2015 que cria o Estatuto do Cigano, cuja importância está na rica oportunidade de aproximar os diferentes, os atípicos e os “minoritários” que se encontram nas gavetas do esquecimento, mesmo dentro de coletivos. Que sonho juntar todos, conhecidos e anônimos, típicos e atípicos, tradicionais e progressistas na mesa do diálogo da construção, viabilizando a voz à quem tem menos voz dentre os que já falam pouco. 
       Aos leitores digo: estou aprendendo sempre, em todo o tempo. Fiquem à vontade para problematizar, relativizar, ponderar e assim abrir o diálogo de uma construção conjunta do saber.      

1. Afrociganos


Alguém já parou para pensar que uma vez que o censo realizado pelo IBGE não possui a opção “ciganos” em seus formulários, a maioria dos ciganos entrevistados se declara “pardo”? E se isso é assim, então os ciganos estão incluídos nos 54% da população negra (pretos e pardos) no Brasil! Neste país há muitos afrociganos, o que não se sabe é quantos! Cabe dizer que esse termo – afrocigano – não é neologismo meu, mas do saudoso antropólogo Frans Moonen, com quem tive o privilégio de aprender por anos e com quem troquei mensagens por e-mail durante muito tempo. Certa vez, lá pelos idos de 2002, conversando sobre “identidade cigana”, ele citou esse termo, “afrociganos”. 
Tenho um compadre, conhecido como “Neguinho”, filho de uma cigana mineira branca e de olhos claros e de pai negro, afrodescendente. Certa vez, durante o mestrado em Ciências Sociais, quando eu participava do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB), desejei escrever um artigo sobre os afrociganos e entrevistei o Neguinho. O artigo não saiu, infelizmente, mas tive essa oportunidade de ouvir meu compadre. Ele me falou algo que nunca mais esqueci: “compadre, eu já sofri muito preconceito e racismo por ser negro, dentro da comunidade, mas lá fora, sofri por ser negro e cigano”. O tema é vasto, rico e necessário, até porque nesses casos deve-se considerar as autodeclarações, autoidentificações e senso identitário, em que pese a consciência daquele cigano que se entende ou não como negro, a despeito da cor da pele. Por isso temos aí um grande e desafiador campo de pesquisa. Quem sabe alguém se anima a pesquisar a realidade dos afrociganos no Brasil?! Foto: eu e meu compadre.

2. Ciganos Surdos

A primeira vez que visitei a comunidade cigana de Sousa, na Paraíba, admirei-me por ver alguns Calon surdos que se comunicavam em linguagem de sinais. Fiquei curioso. Me disseram que havia ali um trabalho social dos Testemunhas de Jeová que estavam ensinando Libras, pois os ciganos surdos tinham um “jeito próprio de se comunicar com gestos” – penso que era um “dialeto de chibi em libras”! A ideia dos religiosos, me disseram, era promover inclusão social, já que, conhecendo a Língua Brasileira de Sinais poderiam se conectar ao mundo. Citei esse caso, mas em todo o Brasil vemos ciganos surdos. Já vi na Bahia, no Paraná, São Paulo, Santa Catarina etc. Muitos estão em acampamentos itinerantes, outros são sedentários, ricos, pobres, Calon e Rom. Eis aí uma das especificidades dentro do universo da ciganidade.

3. Ciganos Homossexuais

Ouvimos falar de ciganos homossexuais na Europa e EUA, inclusive sobre organizações desse segmento. No Brasil pouco se fala nesse tema, apesar de haver diversos casos, geralmente não divulgados. Como no país as comunidades ciganas - diferente do que ocorre em alguns lugares da Europa - tem uma tendência aos formatos mais tradicionais, casos de ciganos LGBT são “escondidos” e abafados, pois geralmente são associados à um comportamento "culturalmente reprovável". Conheço alguns casos (no Brasil) em que há acolhimento por parte dos pais e até mesmo por parte da comunidade, com respeito e compreensão, no entanto ainda é tratado como tabu, o que não permite exposição pública, preservando os envolvidos. Segue um vídeo que trata do assunto: A Gay Gypsy Couple Seek Approval From Their Families | Gypsy Brides US. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ssaWCwnV8eQ


4. Ciganos de religiões atípicas entre Povos Tradicionais

Por conta da hegemonia religiosa católica no Brasil, generaliza-se que “todos os ciganos são católicos” ou que “o catolicismo é a religião tradicional dos ciganos”. Isso não é verdade. Quem conhece a realidade dos ciganos sabe que, mesmo os ciganos que confessam o catolicismo, mantém ritos e crenças etnicizadas, familiares e hibridas combinando diferentes matrizes. Um exemplo são os “santos étnicos” (ciganos falecidos), como o Galvino, que foi um Calon Paulista falecido há cerca de trinta anos e hoje, como ícone de resistência ao Estado, é invocado por muitos crentes em momento de iminente perigo. 
Há muitas décadas existem movimentos protestantes ciganizados (especialmente oriundos de igrejas ciganas europeias) atuando entre ciganos brasileiros. Desde a década de 1980 há forte presença de evangélicos Rom em Campinas, São Paulo. Sua igreja, localizada no bairro Jardim Olinda, a Igreja Evangélica Romani, possui diversas congregações em todo o país e está conectada com um movimento transnacional que se estende por toda a Europa e América do Norte. 
Quanto aos muçulmanos, trata-se de algo mais recente. Por mais que haja ciganos muçulmanos em outros países, como Turquia e Albânia, foi somente nos anos 2000 que algumas famílias do povo Calon se converteram ao Islã, na cidade de Trindade, Goiás. A maioria desses convertidos são capacitados no conhecimento corânico, recebem aulas de árabe e estão assimilando costumes de cultura muçulmana, tal como o uso do lenço na cabeça (Shaila). 
Além desses atualmente há muitos ciganos Testemunhas de Jeová, Adventistas do Sétimo Dia, Espíritas, Umbandistas etc. Foto: ciganos islâmicos.

5. Ciganos Sedentários e Semi-sedentários

Não, “os ciganos não são nômades”! Melhor dizendo: alguns ciganos são nômades, mas como quem conhece ciganos em todo o país posso dizer que a maioria hoje não é mais nômade. Isso pode ter acontecido no passado. Particularmente tenho lutado pela preservação do nomadismo como aspecto cultural de alguns grupos, não obstante o descaso do poder público, mas fato é que muitos terrenos que antes eram usados por itinerantes, hoje estão indisponíveis, pois se tornaram escolas, hospitais, rodovias ou praças. 
É importante dizer que a itinerância é uma marca histórica de muitos ajuntamentos ciganos – talvez a maioria – mas é arriscado afirmar categoricamente que “todos sempre foram”; isso carece de fundamento documental, que é algo que não existe, já que ninguém foi ou é capaz de documentar todos os movimentos de ciganos no mundo, ao longo da história. Os ciganos de Sousa, Paraíba, pararam, fixaram residência. Já não são mais nômades, por mais que se queira sugerir que estão em busca de “novas formas de nomadismo”. 
A comunidade de Trindade, Goiás, segundo dizem alguns de seus anciãos, está ali há mais de um século, desde a época que todo aquele espaço (atual Vila Pai Eterno e Jardim Samara) era fazenda. Hoje eles vão e voltam. Ficam meses fora de casa, vendendo, mas sempre voltam. Da mesma forma os Rom de Campinas, do bairro Taquaral, que viajam e voltam para um ponto fixo. Poderíamos falar de outros ajuntamentos, como os Calon de Camaçari, na Bahia, do Bairro Barroso em Fortaleza, Ceará ou ainda da comunidade de Santa Fé do Sul, em São Paulo.

6. Ciganos Mestiços: italianos, alemães, ucranianos etc

Quando visitei a Bahia pela primeira vez e tive contato com os Calon de Camaçari me surpreendi com sua pele e olhos claros. Tempos depois, numa dessas viagens, visitei o querido e simpático chefe da comunidade, branco e de olhos azuis, e fui acompanhado do Sr. Valdir Apolinário, Calon de São Paulo, pardo. O chefe me perguntou algo interessante: “aquele homem é cigano? Não tem cara!”. Foi curioso porque os Calon do povo de Valdir são todos pardos, lembrando o fenótipo indiano, diferente do chefe de Camaçari. Os dois conversaram e trocaram essa experiência, cada qual discorrendo como cada um tinha suas próprias características étnico-raciais. Conto essa experiência só para dizer que há um espectro raça/cor entre os ciganos brasileiros. Mas o que dizer de ciganos que são filhos de imigrantes ou netos de imigrantes europeus brancos, tais como alemães? 
No Centro-Sul do Paraná conheço uma Calin mestiça, cujo pai é Calon e a mãe filha de imigrantes ucranianos. Outro caso, certa vez, uma senhora, esposa de um colega, quis conversar comigo reservadamente porque acabara de descobrir “que era cigana” e “não estava sabendo lidar com aquilo”. Como assim?! Seus avós, imigrantes italianos, chegaram ao Brasil há décadas. Eram ciganos Sinti. Mas essa informação só veio à tona porque sua mãe acabara de falecer e os tios expuseram esse fato numa reunião de família. 
Fora esses casos temos ciganos italianos Sinti em Santa Catarina, que já se misturaram bastante com brasileiros comuns. Conheço ciganos mestiços, meio ciganos, meio italianos, alemães, ucranianos etc. Não duvido que em algum momento ou outro, diante da característica mestiçagem brasileira, logo vejamos “nipo-ciganos”, ciganos “meio árabes”, “meio haitianos” etc em nosso meio.         

7. Ciganos Descendentes: Distantes e Reidentificados

Esse é um tema sobre o qual tenho me debruçado há um tempo e que me interessa sobremaneira porque me incluo, junto com um grande grupo, nessa categoria. Trato do assunto com mais detalhamento no meu livro “Ser Cigano: identidade étnica em um acampamento Calon itinerante”, publicado pela Amazon em 2017. Juscelino Kubitscheck (1902-1976), Washington Luís (1869-1957), Cecília Meireles (1901-1964), Elvis Presley (1935-1977), Charles Chaplin (1889-1977) e John Bunyan (1628-1688) são alguns exemplos de “ciganos descendentes distantes”, que seriam aqueles que, mesmo sendo ciganos “de sangue” (filhos, netos, bisnetos) mantém-se afastados, distantes, do povo cigano. Alguns desses admitem sua ciganidade em algum momento – como é o caso do Juscelino Kubitscheck (Cf. CAIRUS, 2015), outros não. 
Quanto aos reidentificados, trata-se daquelas pessoas que, sendo ciganas, nascidas no seio de uma família ou comunidade, por motivos diversos, saíram do meio do seu povo/família. Geralmente são casos de adoção à brasileira, pois sabe-se de muitos casos de ciganos que, em situação de vulnerabilidade social, deram seus filhos para adoção de estranhos não ciganos. U.M.Z., 34 anos, é um exemplo, já que foi adotada com apenas um dia de vida por não ciganos em Minas Gerais. Entregue pela família cigana, que passava por graves dificuldades financeiras e grande sofrimento, à um casal não cigano, foi criada totalmente integrada à sociedade ampla. Somente aos 33 anos de idade U.M.Z. foi ter informações do paradeiro de sua família cigana. Curioso é que sua identidade étnica (cigana), ao longo de mais de três décadas, se ancorou somente na história oral contada pelos pais adotivos. Sua (re)identificação com o povo cigano se deu desde cedo, quando ouvia os relatos que a trouxeram para o meio de não ciganos. 
Outro caso interessantíssimo é o do grande vulto do ativismo cigano romeno, Nicolae Gheorghe (1946-2013), que só se percebeu como cigano aos trinta anos de idade, durante uma pesquisa de campo – no curso de sociologia – e decidiu (re)identificar-se como cigano. Foi odiado, perseguido, sabotado, caluniado por ciganos e não ciganos. Pagou um alto preço. O resultado de sua coragem em admitir-se como tal foi um comprometimento apaixonado pela causa dos direitos humanos que o fez ser reconhecido como “um dos maiores ciganos” da história.     

Referências Bibliográficas

CAIRUS, Brigitte Grossmann. De Alemão a Cigano: a construção da identidade de Juscelino Kubitscheck como fator legitimador das políticas étnicas ciganas no Brasil Contemporâneo. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28. 2015, Florianópolis-SC. Anais... 27 a 31 de julho de 2015. p. 1-11.  Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1427677224_ARQUIVO_Cairus,BrigitteANPUHFloripa2015.pdf Acesso em 02 fev. 2019.

SHIMURA, Igor. Ser cigano: identidade étnica em um acampamento calon itinerante. Maringá: Amazon, 2017.

* Diretor do Departamento de Igualdade Étnico-Racial (DEPIR) da Secretaria Nacional de Promoção de Políticas Públicas para Igualdade Étnico-Racial (SEPPIR) - Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Mestre em Ciências Sociais (UEM), especialista em Antropologia Cultural (PUCPR), graduado em Teologia (FTSA). Membro associado do Gypsy Lore Society (GLS) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

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